terça-feira, 20 de fevereiro de 2007

Copo de Sangue

As âncoras do Barril, além das casas construídas para guardar artes da pesca e tratar o atum capturado - hoje restaurantes e lojas -, são o último vestígio da actividade do copejo do atum. Esta pesca era feita com um sistema de artes que, fixado por lastros na areia, montava dentro de água verdadeiras paredes de rede que canalizavam os cardumes de atum para uma zona central (essas redes chamavam-se «rabeira», na zona exterior, e «bicheira», na zona interior, apoiadas por outras redes que impediam os atuns de inverter a direcção, as designadas «invaginações»). Estas longas redes verticais eram mantidas à tona por boias e prolongavam-se até chegarem a um grande rectângulo central, de 350 por 50 metros, dividido em três partes, câmara, bucho e copo. Era no copo, que, depois de fechado, os pescadores fisgavam os atuns, espetando-os com arpões e auxiliados por ganchos. A armação do Barril chamava-se «Três Irmãos» e era uma das principais. Concorriam com ela, a «Abóbora», a «Nova» ou de Nossa Senhora do Livramento e a do «Medo das Cascas», que era tida como uma das maiores - foi arrasada por um temporal e reconstruída sob o nome de Ferreira Neto. A época mais importante desta pesca ocorreu entre 1870 e 1890 e há registo que no ano capicua, de 1881, só no «Medo das Cascas» foram capturados 41 mil atuns. A grande rivalidade na pesca também espelhou a eterna disputa entre Olhão e Tavira, sendo que os principais armadores de pesca do atum eram de Olhão e de Faro, embora algumas das maiores armações se localizassem em Tavira. Não obstante, esta pesca tinha especialistas com grande arte e alguns dos melhores nem sequer se encontravam ali, mas em Monte Gordo. Pela simples razão de Monte Gordo ter sido, na sua génese, uma vila exclusivamente piscatória - dos «cuícos» -, desenvolvida à volta da igreja construída nesse areal. Essa comunidade piscatória de longa tradição teve uma forte identidade linguística, talvez a mais vincada de todo o Algarve. Nos anos 50, a minha mãe fez um dos mais detalhados trabalhos existentes sobre os termos, vocábulos, expressões e fonética local que, então, foi acompanhado por um fantástico levantamento fotográfico sobre a pesca do atum (não é o caso da foto aqui reproduzida). A imagem que retenho desde sempre desta pesca é a de uma gigantesca mancha de sangue na água, que as correntes demoravam a dissipar.

4 comentários:

nnannarella disse...

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Coincidência. Tempos houve em que também me interessei por artes, barquetas e vocábulos da pesca. Buscas para um atlas de águas internas europeias. Portanto, só rios e lagoas e assim. Ainda é um universo que me chama.

Já sabia deste espelho d'água de sangue que era a pesca do atum. Nem imagino o que seria vê-lo... vê-lo..., ainda que eu tenha obsidiante inclinação pelo sangue, tal piranha ou tubarão, credos credos...

Texto riquíssimo, título a condizer, conclusão de poesia, que não impede de sentir arrepios ao pensar nas dores dos animais.

Bom copo este, Seintji, a estas horas dsa manhã...:)

nnannarella disse...

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Acerta o relógio. São 11.47.
:P

St. J. disse...

E também tem rios, charcas, sapais, lagoas, lagos e albufeiras.

Hei-de colocá-los todos aqui, para Ti. ;)

St. J. disse...

Agora, Meia-Noite :)